quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

24 de Fevereiro

O PEIXE E O MAR (Nós e Deus)

"Uma vez pediram a um peixe para falar do mar.

- Dizem que é muito grande o mar - respondeu o peixe - Dizem que sem ele morreríamos. Não sou o peixe mais indicado para falar do mar. Eu, do mar, o que conheço bem são só estes dez metros à superfície. É só deles que vos posso falar. [...] No meu cardume não se fala do mar. Fala-se das algas, das rochas, das marés, dos peixes grandes e perigosos, dos pequenos e saborosos e de que temperatura fará amanhã. O meu cardume é assim: eles vão e eu vou atrás deles.

- Mas tu, que és peixe, nunca sentiste o mar?

- Creio que o sinto, às vezes, ao passar-me pelas guelras. Uma vezes sinto-o, outras não. Às vezes sinto-o quando não me distraio com outras coisas. Fecho os olhos e fico a sentir o mar. Isto tudo de noite, claro, para que os outros não vejam. Diriam que sou louco por dar tempo ao mar.

- Conheces o mar, portanto. Podes falar-nos do mar?

- Sei que é grande e profundo, mas não vos quero enganar. [...] Eu nunca desci muito fundo. Bem, talvez uma ou duas vezes... Um dia as ondas eram tão fortes que eu tive de me deixar levar muito fundo, para não morrer. Nunca lá tinha estado e nunca esquecerei que lá estive. [...]

- Foi mau, quando desceste? Porque voltaste à superfície?

- Não foi mau, foi muito bom. Havia muita paz, muito silêncio. Era como se fosse lá a minha casa, como se ale eu estivesse inteiro.

- Porque não voltaste lá ao fundo? Por preguiça?

- Às vezes acho que é preguiça, outras vezes acho que é medo.

- Medo? Mas tu não disseste que era bom? Medo de quê?

- Medo do desconhecido, medo de me perder. Aqui à superfície já estou habituado. Adquiri um certo estatuto para mim mesmo. Controlo as coisas ou, pelo menos, tenha a sensação de as controlar. Lá em baixo não sei bem o que me pode acontecer. Estou nas mãos do mar.

- Tiveste medo, quando chegaste ao fundo do mar?

- Não tive medo algum. Era tudo muito simples... E no entanto agora tenho medo... Mas eu não cheguei ao fundo do mar! Apenas estive menos à superfície.

- E que dizem os outros que lá estiveram?

- Dizem coisas que eu não entendo. Dizem que é preciso ir para perceber. E dizem que nada há mais importante na vida de um peixe.

- E explicaram como se vai?

- Aí é que está. Explicam que não se chega lá por esforço, que só podemos fazer esforço em deixar-nos ir. Que é só o mar que nos leva ao mar.

Então veio uma corrente mais forte que o fazia descer. O peixe tentou lutar contra ela com quantas forças tinha, à medida que via distanciarem-se as coisas da superfície. Talvez para sempre... Mas depois fechou os olhos, confiou e já sem medo deixou-se ir."

Nuno Tovar Lemos, in "O Príncipe e a Lavadeira"

1 comentário:

  1. Obrigado por este texto.=)

    Dá-me mesmo confiança. E faz todo o sentido!

    Bjs
    PBP

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