quarta-feira, 4 de agosto de 2010

4 de Agosto

A Moeda, o Homem e Deus

«Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.»

Quando Cristo deu aos fariseus a célebre resposta, tinha diante dos olhos a Moeda e o Homem. A moeda, com a imagem de César. O Homem, com a imagem de Deus. A moeda, sinal e força da Economia, símbolo de toda a ordem material em que César domina. Cunhada por César, a moeda é de César. Baseada na moeda, a Economia subordina-se à Política. À esfera política, em que César campeia, foi entregue por Cristo a esfera económica, a que a imagem de César preside. O mundo das coisas materiais, que dão de comer aos homens, é um mundo de coisas sem espírito, em que nenhum César vive. A esse mundo, cujo valor reside no que significa dos homens, e cuja máxima grandeza lhe é dada pela imagem de César, tem de estar sobranceiro o mundo dos homens reais, em que a vida circula e cresce, e em que a imagem de César se retira diante do César pessoal.

A máxima evangélica, profunda como um abismo, entrega a Economia à guarda e tutela da Política. E entrega a Política a Deus.

O plano político é o plano entre todos humano, aquele que o homem melhor domina, melhor abrange, mais facilmente assalta, porque pode, ao considerá-lo objectivo, desdobrá-lo à altura dos seus olhos. Tudo o que é político é humano (nem tudo o que é económico; nem tudo o que é religioso).

No Homem está impressa a imagem de Deus. No plano político, a sombra do plano religioso.

A esse mundo das coisas políticas, cujo valor reside no que representa de divino, cuja máxima grandeza deriva da pessoa de César, deve presidir o mundo das realidades divinas, a esfera do Absoluto: Dai a Deus o que é de Deus.

E dando assim a Deus o que a Deus pertence, incluso se lhe dá o que pertence a César. O plano económico, através do político, integra-se no plano religioso.

E, com efeito, não é verdade que tudo pertence a Deus?

De um ponto de vista que por absurdo se diria unilateralmente divino, parece que a fórmula evangélica haveria de ter sido apenas: «Dai a Deus o que é de Deus». Porque, no fundo, tudo se deve a Deus.

Mas a complexidade da máxima cristã não pode considerar-se ocasional, pedida apenas pelo momento. Corresponde a uma atitude original do Cristianismo: a distinção das esferas, a integração das esferas pelo princípio hierárquico.

Mostra a História da Antiguidade que a tendência do homem é para deduzir da Religião para a Política (embora, a uma observação superficial, possa parecer o contrário). Quando Cristo vem ao mundo, é tremenda a crise do mundo. As velhas religiões definham, enquanto o Império avança. A Política, filha da Religião, sugava-lhe as últimas forças, transformava-a numa sombra ondulante. À medida que os quadros sociais se alargavam, rompiam-se os quadros religiosos. À medida que estes se rompiam, perdiam-se os homens, soltos e vagos, humilhados e impotentes, no vasto Império, em que os ventos os arrastavam como a células desprendidas de organismos já mortos. A sociedade familiar dissolvia-se. Assente sobre ruínas, só o Império campeava. As velhas religiões particulares - domésticas e civis -recuavam na sombra. E, através do idealismo dos filósofos, ou do culto de Roma, ou dos mistérios órficos, era para a religião universal que se tendia, embora lentamente, imprecisamente. Era um bem? Era um mal? Considerada em si mesma, essa tendência era formalmente adequada à unicidade divina; mas, sem inspiração do Alto, era falsa na essência e prometia naturalmente ao Erro a perenidade. Era a crise das crises.

Foi então que Deus declarou chegada a Plenitude dos tempos. E foi sobre as cinzas das velhas religiões particulares e sobre a promessa da nova e falsa religião universal, que Cristo proferiu a sentença determinante: A César o que é de César; a Deus, o que é de Deus.

A sentença não vinha isolada. Era uma regra de acção, uma regra de vida, dentro dum mundo doutrinário fora do qual se perderia, vazia de sentido, ou se adulteraria, incompreendida. Essa regra é especificamente cristã - e isto, não só historicamente: também, e sobretudo, filosoficamente.

É preciso compreender que representa o Cristianismo no crepúsculo da Idade Antiga, para medir o alcance daquela fórmula. Fenomenicamente, à superfície das coisas, o Cristianismo entrou no plano das religiões como o termo da tendência universalista. Ora essa tendência esfarrapava a veste harmoniosa da Sociedade antiga, diluindo as crenças que alicerçavam a Família e a Cidade, deixando o indivíduo isolado, nu, em face da omnipotência da República - única, absoluta, divina. Tudo o que afeiçoara os homens, os conformara, os defendera, os vinculara, tudo era minado pela tendência à religião universal. Por um lado - o seu lado cósmico - ela acentuava a pequenês do Homem dentro do Universo, ao passo que por outro - o seu lado político - acentuava a pequenês do Homem dentro do Império. A Sociedade, que fora à medida do Homem, era agora à medida de uma Ideia.

Fenomenicamente, o Cristianismo parece o cúmulo dessa Ideia…

Como a realidade é diferente! O Deus revelado por Cristo é, certamente, sim, o Deus Único, válido para todos os lugares e todos os tempos, ao invés dos deuses domésticos e civis; é certamente o Deus do Universo e o Deus do Homem.

Mas não é um Deus cósmico, nem um Deus político, porque é transcendente ao Cosmos e à Polis,mesmo quando o Cosmos é infinito e a Polis é imperial. O Deus revelado não é o limite da série das divindades pagãs. Alfa e Ómega do Mundo e da Humanidade, o Deus revelado ilude a tendência da série; não é o termo N de nenhuma progressão; nada O define, nada O limita, nada O exprime. É Ele. A série pagã teria terminado no Imperador universal, ou na Ideia do Bem. A Revelação não veio completar a série: veio, muito simplesmente, aniquilá-la.

Sobre as ruínas das velhas religiões e a promessa da falsa religião universal, o Cristianismo tomou o Homem nas suas mãos, fê-lo subir ao alto das ruínas e esquecer a promessa do Erro esplêndido - e mostrou-lhe o Pai. Mais poderoso que César, mais puro que a Ideia, o Deus Revelado chamou cada homem pelo seu nome e ensinou-lhe o sentido da vida.

Nesse momento único, desenhou-se diante do Homem uma formidável encruzilhada. Corrido o véu do seu destino eterno, pairava a interrogação sobre o seu destino temporal. Essa dúvida, de que, hoje podemos falar em abstracto, não se formularia, não se poderia formular, se Cristo não tivesse falado.

Psicologicamente de acordo com as tendências da época, a Fé no Deus único e transcendente tê-Ias-ia reforçado, estilhaçando de vez os velhos quadros sociais em que os homens se agrupavam; deixando cada um, como filho de Deus, fazer sozinho e por seu pé a demanda do Reino de Deus, forte na sua consciência pessoal, para mais socorrida pela graça. Olhando as coisas como elas eram, olhando também as tendências ainda hoje manifestas, não parece lícito duvidar de que teria sido esse o caminho seguido: a anarquia social como prelúdio ao Reino de Deus.

Mas Cristo não veio dizer que sim às tendências do Seu tempo. A Família, que vivera da Religião e pela Religião morria, recebeu a sagração do Ungido: reviveria pela Religião. O grande Sacramentoseria o alicerce da Sociedade. E não só o alicerce, mas a Sua viva imagem, a sua célula, em que a autoridade e a liberdade harmonicamente se combinariam.

E, quando parecia natural que César, deus desmentido, houvesse de rolar por terra; quando parecia lógico que, na série pagã, tornada estéril, com o carácter falsamente divino caísse o carácter político - o valor de Autoridade -, ergueu-se a voz de Cristo: «Dai a César o que é de César».

Em vez de abrir as portas à anarquia social, Jesus proclama a santidade da Família, torna-a participante da vida divina, e defende o facto-político, que a Sua doutrina parecia ameaçar.

É no entanto para reflectir que, ao passo que a Família é consagrada, não o é o Estado. Sobre o pilar inamovível da Família, Cristo deixa flutuar o Estado, não considera nele nenhuma forma particular, nem mesmo uma estrutura natural como embrião.

Com todas as cautelas, talvez se possa ver nessa espécie de abstenção um sinal de que Jesus Cristo entendia que a sociedade civil se devia moldar sobre a sociedade familiar - o que daria razão ao Paternalismo ou Patriarcalismo.

Mal esboçando esta hipótese, o que com mais nitidez ressalta é, por um lado, que o Cristianismo (como tal) não pretendeu organizar a Cidade; por outro, que, como já vimos, reconheceu a Cidade. E é para notar que a reconheceu quando a sua forma estava mais longe da Anarquia e mais facilmente figurava de coisa divina. Mas não nos iludamos, porque é entre dois polos fixos que Cristo deixa girar o eixo do Estado. Entre a ,Família e Deus, fica o reino de César. E a Família é o embrião, o gérmen, da futura Humanidade divinizada. Gérmen humilde ainda, simples esboço do que há-de ser o Reino de Deus, na aurora dos Tempos Novos, quando Deus lança ao Homem a chamada, a vocação...

Não é a grande Sociedade, a sociedade civil, então imperial, que o Cristianismo vem organizar, mas a pequena sociedade, a familiar. Porque o mundo não estava maduro para ser ordenado pelos princípios cristãos; para ser, ele próprio, coisa sagrada, divinizada. Se o estivesse, não seria o momento da Revelação, da Igreja e da Família -. mas o momento da Vinda definitiva, o momento em que a Humanidade passaria deste mundo ao Reino de Deus.

O Cristianismo, demasiado perfeito para a sociedade terrena, necessariamente inadequado à organização do Estado, parou no limiar do Estado. Não pretendeu substituir-se a César; fez a distinção das esferas: César, e o que é de César; Deus, e o que é de Deus.

No crepúsculo da Idade Antiga, que deduzia a Política da Religião, Cristo vem ensinar que não é do Cristianismo que se deve partir para o campo da Política.

E no entanto, se a Política é o plano entre todos humano; se o Homem é a imagem de Deus - o que a Deus se deve entregar é bem o Homem com a Sua imagem, é bem a Política, é bem o reino de César. Porque César pertence a Deus.

Ao ser entregue a César, a moeda não pode ter apagada a imagem de César. Entregue a Deus, César não pode ter apagada a imagem de Deus.

Indutivamente, a Economia ordena-se à Política, e esta à Religião.

Pelo princípio hierárquico, o Cristianismo soube, depois de as distinguir, integrar as esferas : a económica, na política; a política, na religiosa.

«Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.»


(Henrique Barrilaro Ruas, in A Moeda, o Homem e Deus, 1957)

((retirado daqui))

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